A Memória Social do Cangaço no Povoado do Maracujá, Serrolândia - 1930. Onde Morreu Azulão?
Este
trabalho tem como tema geral a memória social do cangaço na década de 1930.
Seus objetivos são estudar a memória do cangaço no povoado do Maracujá,
buscando compreender a sociedade que esses indivíduos estavam inseridos na
década de 1930.
A
metodologia utilizada se baseia nas entrevistas feitas com idosos que
conviveram na infância e na adolescência com o fenômeno, bem como os exemplares
do jornal O Lidador que circulou na cidade de Jacobina, entre as
décadas de 1930 e 1940.
Todas
as fontes dialogaram com produções historiográficas que puderam embasar as
discussões a respeito do fenômeno e de outros aspectos relacionados a ele, como
as secas, a cristalização da memória e a representação do cangaço.
Dedé, 91, Dudé, 97, Lizânio, 103, Geraldina e Chico, falecidos. Ela morreu com 95 anos; ele, 113. |
INTRODUÇÃO
Em
meio aos relatos ouvidos durante toda a minha vida sobre o cangaço, os crimes
cometidos pelos cangaceiros, as atrocidades e a desordem social que esses
indivíduos causaram, desenvolvi um fascínio por essas histórias de modo que
sempre tive desejo de pesquisar essa temática de forma mais profunda.
Por
isso, este trabalho inicialmente deu enfoque à memória do fenômeno cangaço na
busca de compreender por que nas regiões onde os grupos e subgrupos de
cangaceiros passaram se desenvolveu uma imagem do fenômeno exclusivamente
voltada para a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Situado
a 16 km da sua sede Serrolândia, o povoado do Maracujá que segundo Diomedes
Pereira dos Reis “ostenta a posição de ser o maior povoado do município”, tem na memória dos seus moradores resquícios muito fortes
do fenômeno cangaço. Essa memória mantida ao longo do tempo, ganhou forma e
discursos variados sobre os acontecimentos que se desenrolaram muito próximo
onde hoje é o povoado. É comum chegar nesse lugar e ao perguntar a um idoso
sobre o cangaço, ouvir diversas histórias sobre esses bandidos que assolaram a
região na década de 1930.
Nesse período, existiam poucos povoados próximos ao
pequeno arraial Serrote, que começa a se desenvolver a partir de 1929. Pequenos
lugarejos como é o caso de Itapeipu e Tapiranga eram mais desenvolvidos, com
feiras semanais e crescente comércio. Essas localidades foram alvos dos ataques
desses bandoleiros que buscavam extorquir os donos das casas comerciais existentes.
Nesse ambiente mais “urbanizado” também compravam munições para as possíveis e
constantes trocas de tiros com as tropas volantes que estavam ao seu encalço.
Segundo a entrevistada Maria, o bando que passou na
fazenda de sua mãe seguiu em direção ao povoado do Tanquinho nome popular do
povoado de Tapiranga. Segundo ela, o bando não fez “traquinagens, passou apenas
de passagem”. [10] Mas isso não era uma atitude comum desses
bandoleiros, na maioria das vezes eles causavam transtornos por onde passavam e
muitas pessoas tinham de abandonar suas casas para se entocar no mato.
A
presença dos cangaceiros na zona rural de Jacobina causou danos e desordem na
vida dos moradores da região, pois os hábitos comuns como ir à feira, trabalhar
na roça, tiveram que se modificar. Foram muitas as famílias que deixaram sua
casa, sua plantação, seu rebanho para se esconder nos matos com medo do que se ouvia
dizer das crueldades cometidas por esses homens. Proteção e asilo eram
prioridade mesmo que para isso tivessem que deixar para trás tudo o que tinham.
Autora do projeto, Karina Sousa. |
AS
NOTÍCIAS SE ESPALHAM: OS CANGACEIROS ESTÃO NA ÁREA
Nos
anos em que as questões do banditismo ficaram mais “arrochadas” nas vilas e
comarca de O Lidador dedicou toda a sua primeira página para falar do
pavor vivido pelos moradores da região, com a presença de um dos subgrupos de
Lampião, chefiado por Azulão e Arvoredo. Foi “dado cabo” desse bando na fazenda
Lagão do Limo, uma das muitas que existiam onde hoje é o povoado do Maracujá. A
matéria com o tema O Banditismo – Arvoredo e Azulão sicários de Lampião em
terras jacobinenses, [5] apresenta o relato de Antônio Carneiro da
Silva que segundo o jornal foi salvo milagrosamente da morte, pois estava nas
mãos dos piores cangaceiros que a região conheceu.
Jacobina,
Jacobina,
Nos
dias 3, 4 e 5 do corrente, a cidade de Jacobina viveu momentos de pavor e
consternação em face das notícias aqui chegadas de Itapeipu, Serrote e outros
lugares vizinho perto desta cidade. onde de passagem o grupo de Azulão e
Arvoredo, ora desembestado do de Lampião, praticou uma série de crimes com
requisitada e habitual barbaridade. [sic][7]
O
jornal chegou a entrevistar um dos sobreviventes que ficou cara a cara com este
bando, dando espaço para o subdelegado do arraial de Itapeipu, Antônio Carneiro
da Silva, relatar seu encontro com esses bandoleiros e como ele sobreviveu.
CRECOLHENDO
VESTÍGIOS DO PASSADO: O ESTUDO DA MEMÓRIA
As
histórias sobre o cangaço são contadas não apenas pelos mais velhos da
comunidade, pessoas mais novas fazem questão de contar os maus feitos e as
crueldades realizadas pelos cangaceiros que por ali passaram segundo o que os
seus avós e bisavós lhes tinham contado. As memórias que foram colhidas mostram
uma perspectiva da realidade do fenômeno cangaço a partir das lembranças de
quem presenciou todos os desajustes sociais que esse movimento causou.
Os
entrevistados fizeram questão de contar sobre os fatos ocorridos na fatídica
tarde de 15 de outubro de 1933. Data marcada na memória por causa da morte dos
integrantes de um dos subgrupos de cangaceiros, liderado por Azulão,
considerado um dos mais cruéis que passaram por essas bandas. Azulão, sua
mulher Maria, Canjica e Zabelê foram mortos na Lagoa do Limo, próximo do
povoado do Maracujá. Esse episódio fez parte de todas as rodas de prosa que
tive com os idosos da comunidade. Alguns ainda se arriscam a lembrar dos nomes
dos indivíduos e contar com detalhes esse acontecimento.
“Alguns
deles encontraram na tal Lagoa do Limo com a força volante. Aí agora foi trocar
tiro. Eu lembro bem de três, esses três eu sei, um tratava Azulão, outro Maria
Bonita (na verdade é Maria mulher de Azulão) e o outro Zabelê. Esses três
mataram e os outro fugiram, escapou e o povo conversa que eles (A força
volante) mataram e tiraram as cabeça e deixou os corpos pro urubu comer.[17] “[sic]
Durante
esses relatos muitas questões ficaram evidentes, como a mistura de diferentes
movimentos. A passagem da Coluna Prestes[18]por Mairi, em 26 de junho de 1926, tem se
embaralhado com o cangaço. Dois dos idosos entrevistados confundiram a passagem
da Coluna Prestes por Mairi com a ação dos bandoleiros.
Uma
das entrevistadas chegou a dizer que os homens da Coluna Prestes também eram
cangaceiros. Percebi que as representações dos fatos estão relacionadas ao medo
daquilo que causou instabilidade social. Em ambos os casos, tanto na passagem
da Coluna Prestes como no fenômeno cangaço, as vidas dos entrevistados foram
bruscamente alteradas pelo medo gerado pelo que se ouvia dizer de seus integrantes.
Ao
perguntarmos sobre o cangaço ao entrevistado Lizânio ele nos disse:
“Esse
negócio de Lampião e os bandidos, era um bandidismo que havia, os primeiro
bloco eu acho que era chamado revoltosos (nome dado a Coluna Prestes) tinha
esse bloco dos revoltosos no ano de eu era menino, dormimos no mato também.[19] [sic]”
Fica
evidente o impacto para os entrevistados que tiveram de deixar seu pedacinho de
terra, sua casinha, para se “entocar” nos matos como se fossem animais
amedrontados. A fim de preservar a vida, em face do que se ouvia falar dos
cangaceiros, as pessoas tiveram que passar noites e noites entocadas na
caatinga.
Conforme
relatos colhidos, os “rebeldes” que marcaram os anos finais da chamada
República Velha, em oposição às oligarquias regionais e os movimentos
patrióticos também causaram muita instabilidade, medo e mudança na vida
daqueles que viviam em regiões mais afastadas das áreas urbanas. Afinal, era no
ambiente rural e isolado que os grupos de bandoleiros procuravam e encontravam
um campo fácil para extorquir, torturar e matar aqueles que se opusessem as
suas vontades.
“O
povo tinha medo, eu mesmo dormi no mato muito tempo, que dizer muitas noites.
Assombrava assim e saia. O povo dizia tão aí, tão perto. Aí o povo num ficava
em casa, não. Ia dormi no mato. Chegava lá, não acendia fogo, não, só um
foguinho baixinho.”[20]
Por
meio desses relatos podemos compreender que o medo é uma representação muito
forte na memória desses idosos. Uns ainda temem em falar desse assunto, como se
houvesse possibilidade de que aqueles indivíduos pudessem vir lhes causar algum
mal.
A
REPRESENTAÇÃO DA FIGURA DE LAMPIÃO NA MEMÓRIA COLETIVA
Lampião e Azulão |
Ao recolher os relatos dos
idosos constatei que persiste na memória deles a ideia de sempre associar a
figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aos demais integrantes do
bando e seus subgrupos. Para os idosos, todo cangaceiro que passou pela região
era Lampião. Os relatos colhidos mostram quase sempre a figura do “rei do
cangaço” como responsável e líder das desordens ocorridas, ainda que ele não
tenha passado pelo território delimitado pela pesquisa. A primeira observação
que fiz é que quando se fala na temática do cangaço na memória coletiva dos
idosos do povoado do Maracujá é que esse fenômeno se reduz a Virgulino Ferreira
da Silva.
Em
entrevista com Geraldina Alves da Silva, moradora do povoado do Maracujá,
percebi o medo e o efeito que a palavra cangaço provoca naqueles que ainda se
lembra do período de instabilidade vivenciado na década de 1930.
“Quem
é que não tinha medo, porque esses diabos saíram no mundo e ninguém sabia.
Quando pegou andando nas fazendas, que eles andava nas fazendas, caçando
dinheiro pra roubar, aquele lote de satanás. E era um bando, não era pouco não,
era uns bicho, era uns bicho de natureza de cobra. Avimaria não gosto nem de me
lembrar, não gosto de lembrar não, senão eu não durmo de noite.[4] [sic]”
A representação do cangaço e dos cangaceiros na
memória coletiva se formou de acordo com as noticias que circulavam sobre as
práticas de Lampião e seu bando. O que se divulgava pelos jornais era que por
onde ele e seu bando passava ficava um rastro de sangue e medo. O fato é que o
jornal teve um papel muito importante na produção de uma imagem do cangaço
ancorado na figura de Virgulino Ferreira da Silva.
AS HISTÓRIAS, AS CRENÇAS E A MEMÓRIA DO CANGAÇO
Ao redor de uma fogueira ou ao pé do fogão a lenha é comum
se ouvir histórias do cangaço. Certos relatos são contados com características
sobrenaturais. Reforçando o imaginário simbólico e místico em torno desses
cangaceiros e das pessoas que cruzaram seu caminho. É comum idosos relatarem
casos que fogem à lógica do possível. Mas são essas lembranças que marcam a
memória dos idosos do povoado do Maracujá e que faziam parte do mundo social
deles. Acreditar em forças que vão além da capacidade humana fazia parte da
realidade desses indivíduos e dos próprios cangaceiros que, segundo relatos,
costumavam fazer rituais de proteção. Essas práticas, segundo suas crenças, os
protegiam de emboscadas e de serem mortos.
Dois episódios se tornam repetitivos nos relatos
recolhidos nessa pesquisa. Um é a morte de um fazendeiro chamado Mariano e seu
filho, assassinados a tiro pelo bando de Azulão. O outro é o tiroteio que
aconteceu na Lagoa do Limo, onde Azulão e parte de seu bando foram mortos pela
volante de Mairi. Tratam-se de acontecimentos que tiveram grande repercussão na
região. As notícias se espalharam no meio do povo. Nas feiras, nas bodegas, em
cada canto desse sertão.
As lembranças desses fatos são parecidas em todas as
entrevistas, o que significa que fazem parte da memória social do grupo, das
relações sociais no tempo em que eram mais próximas, onde mesmo morando léguas
de distância uns dos outros, os indivíduos mantinham laços de afeto e amizades
que transbordavam os limites territoriais. Essa aproximação do grupo social
desenvolve, segundo Bosi, uma visão consagrada dos acontecimentos.
Um dos aspectos mais instigante do tema é o da construção
social da memória. Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma
tendência de criar esquemas coerente de narração e de interpretação dos fatos,
verdadeiros “universo de discurso”, “universos de significados”, que dão ao
material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos
acontecimentos.[1]
Identifiquei lembranças diferenciadas dos fatos no caso
dos assassinatos do fazendeiro Mariano e de seu filho. Geraldina Alves da Silva
fez questão de relatar esse ocorrido, acrescentando crenças e superstições do
imaginário do sertanejo, durante entrevista concedida.
“Quando os diabos atiraram no filho, o pai veio correndo
e eles também atiraram no pai. Depois disso o povo chamou um curado que tinha
por lá e o homem fez uma cruz com o pai e o filho para atrasar a viagem dos
satanás. Depois disso eles não conseguiram sair daquela capueira[2], rodava, rodava e só ficava no mermo lugar. É tanto que
um deles falou: a morte daqueles homens nos prejudicô. E muito.[3] “[sic]
Em outra entrevista, dessa vez com Francisco Lomes do
Nascimento, ele também apresenta um depoimento parecido em relação à questão do
imaginário místico que fazia parte do modo de viver daqueles indivíduos.
“É interessante que quando eles matavam um animal pra
comer nunca comia a parte de trais do animal. Eles não gostavam não. Porque
eles acreditavam que se comesse a parte traseira do animal, eles ia se atrasar
na viagem e os macacos[4] iam pegar eles.[5] “[sic]
Nos
depoimentos colhidos pude observar diversas vezes a expressão de crenças e fé
em relação à figura de Lampião. É comum ouvir dizer que ele tinha seus santos e
eram suas rezas que o protegiam nas batalhas contra as tropas volantes. No
popular e no meio das rodas de conversas, as pessoas comentam que sempre que
Virgulino saia para um confronto em alguma cidade ele ia fazer suas orações se
encontrava com um padre, ou curandeiro, para que seu corpo fosse fechado, daí
nem uma bala o atingia.
Há
quem diga nesses relatos populares, que Lampião morreu por que na noite
anterior ele havia se deitado com Maria Bonita, coisa que ele não poderia fazer
por que abriria seu corpo. Por isso ele foi atingido por bala e morreu. Essas
histórias populares em relação aos cangaceiros fazem parte do discurso e da
memória das pessoas e ganham versões diversas.
As
histórias e crenças se tornam um escudo protetor que desenvolve uma imagem de
cangaço firmada numa ideia voltada para as forças sobrenaturais, para um pensamento
mítico e simbólico. Isso não se dá apenas com pessoas que estão fora do
cangaço, o próprio cangaceiro carrega em seu corpo patuás, símbolos de proteção
e dessa forma que os cangaceiros ficam revestidos em uma simbologia, em
superstições.
Esses
indivíduos criavam a ideia de que transitavam entre homens carnais e seres com
capacidades sobrenaturais. A mitificação da figura dos cangaceiros ainda comove
e causa pavor naqueles que vivenciaram o cangaço na década de 1930. Deste modo,
pude compreender o mundo sertanejo, o universo do próprio cangaço e como as
pessoas visualizavam esse fenômeno. É importante notar que todas as
representações passam a fazer parte da cultura popular regional, pois o cangaço
faz parte da história e da vida dos moradores do atual Maracujá e das regiões
circunvizinhas.
Compreendo
que a temática do cangaço não é um assunto defasado e esgotado. Na perspectiva
de um estudo da memória, percebi que essa temática ainda pode ser muito
explorada uma vez que apresenta variedades de informações que não podem ser
desprezadas. Compreender esse fenômeno pela memória possibilita outras
perspectivas e novas visões sobre o tema, que perdeu, ao longo dos anos, espaço
na área acadêmica.
OBS: Matéria editada. Veja na íntegra acessando http://www.meussertoes.com.br/tag/bahia/
Fonte: http://www.meussertoes.com.br
Por
KARINA DE SOUSA SILVA
A Memória Social do Cangaço no Povoado do Maracujá, Serrolândia - 1930. Onde Morreu Azulão?
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Parabéns Karina, excelente materia��������
ResponderExcluirImpressionante como as pessoas mais simples já conseguiam discernir as semelhanças entre dois grupos distintos que compartilham as mesmas ideas. Cangaceiros e comunistas so se diferenciam na forma de agir, mas ambos têm o mesmo objetivo: viver às custas daqueles que acreditam na força do trabalho para vencer as adversidades da vida. Parabéns pelo brilhante trabalho Karina.
ResponderExcluirUma dúvida. Em todos os livros e outras publicações consta como sendo Lagoa do Lino. Com n. Qual o correto? Limo ou Lino. Essa denominação está de acordo com o usado na região? Obrigado e parabéns pelo trabalho.
ResponderExcluirLino com certeza
ExcluirParabéns pela iniciativa é muito importante o levantamento da história de cada região, e tenham a certeza que muito pode ser compartilhado, e assim, muito se aprende com os senhores de idade que muito tem visto, muito ouviram e muito sabe.
ResponderExcluircaro amigo ANTUES COLOCA AI NO BLOG O PDF QUE TE MANDEI NO ZAP
ResponderExcluirSOBRE A HISTORIA DA PASSAGEM DO GRUPO DE AZULAO POR NOSSA REGIAO, UM ABRAÇO ADELSO MOTA